A chacina da Rua João Pessoa
Canto do negro morto
Um arrepio na noite...
De repente, um homem morto na rua.
O rosto permanece vivo das suas palavras.
Dos cantos dos olhos descem dois grandes rios.
Onde irão parar esses rios de tão intensa alvura?
As mãos do negro abertas para o ar, cheias somente da noite.
As manchas vermelhas na calçada são as únicas rosas que florescem em torno do seu corpo...
O vento da noite, debalde, tenta gelar o coração da companheira onde o negro muito antes da morte acendeu uma estrela...
Os filhos do morto procurarão o pai e um dia o encontrarão amanhã ou mas além.
A noite conduz um recado no lombo do vento, E a cidade se alarga.
As mãos abertas para o ar Esperam a madrugada.
(1947)
José Sampaio
(1913-1956)
Com a redemocratização do país a partir de 1945, o engenheiro e professor José Rollemberg Leite, elegeu-se Governador do Estado de Sergipe (1947-1951), aliando-se ao PDS – Partido Democrático Social, presidido por Francisco Leite Neto (1907-1964), com marcante influência da Liga Eleitoral Católica – LEC, liderado pelo integralista Hélio Ribeiro, derrotando o favoritismo de Luiz Garcia, da UDN – União Democrática Nacional. Portanto, José Rollemberg “eleito por uma coalizão conservadora, através de uma campanha radicalizada, com o apoio da Igreja Católica em ostensiva propaganda anticomunista, o novo governador escolheu secretariado dentro de sua base política, tentando atender os interesses por vezes contraditórios entre pessedistas e perrepistas”.[1] O assassinato do operário sindicalista e membro do Partido Comunista, Anísio Dario, na noite de 29 de novembro de 1947, em plena via pública de Aracaju, pela força Policial do Governador José Rollemberg Leite (1912-1996), completa hoje 65 anos, fato pouco conhecido, mas marcante que manchou com sangue as páginas da história política sergipana.
***
“A presença do povo na Rua João Pessoa já é uma manifestação de resistência à Ditadura. Compete a ele agora ir para as suas casas ordeiras, calma e pacificamente”. Após o Deputado Armando Domingues proferir estas palavras a Cavalaria e a Polícia Militar começaram a massacrar o povo. O Secretário da Justiça e Interior, João de Araújo Monteiro em Nota publicada no Diário Oficial de 2 de dezembro: “determinou ao Cel. Chefe de Polícia a abertura de rigoroso inquérito, afim de apurar quais os responsáveis pela perturbação da ordem, ontem verificada, e, bem assim, pela morte lamentável do comunista, a fim de se proceder como de direito”.[2] Nesta mesma Nota, relata o acontecido: “Às Oito horas da noite, tendo sido desmanchado o piquete, os agitadores comunistas, tendo à frente Armando Domingues Carlos Garcia e Otávio José dos Santos, resolveram realizar o comício na porta do Cinema Rio Branco. Nesta ocasião o Sr. Cel. Chefe de Polícia mandou um sargento da Cavalaria pedi que os mesmos revogassem os seus intentos e solicitasse à massa a sua retirada para suas residências, tendo o agitador Carlos Garcia respondido que não obedeceria a ordem daquela autoridade, o mesmo acontecendo com o Sr. Armando Domingues que, imediatamente assomou a tribuna para exaltar o ânimo dos vermelhos, jogando-os contra a Polícia”.[3]
No final da tarde do dia 29, a Rádio Difusora e o carro de propaganda da Empresa Guarani, divulgavam uma nota oficial de João de Araújo Monteira, Secretário de Justiça e Interior do Estado, avisando a população em geral que não havia sido autorizado o comício que os parlamentares comunistas programaram. Porque a força policial estava preparada para impedir a sua realização. Apesar da grande divulgação na imprensa da realização do comício, os organizadores só foram avisados da sua proibição no dia, pois até aquele momento não existia nenhum propósito de impedi-lo por parte das autoridades. A comunicação da proibição aconteceu na tarde do dia 29, quando o deputado Armando Domingues foi procurado pelo Secretário da Justiça e Interior, que perguntou ao parlamentar se ele falaria ao povo. Naturalmente, era uma ameaça.
À noite a grande massa popular se espalhava ordeiramente pela Rua João Pessoa e Praça Fausto Cardoso, enquanto a Cavalaria aguardava ordens do seu Comandante para dispersar os manifestantes. A galope, um soldado aproxima-se de um grupo de populares e diz: O Coronel Djenal ordena para dispensar. Neste exato momento, às 20 horas, o Deputado Armando Domingues e os vereadores Carlos Garcia e Otávio José dos Santos, do PCB, acompanhado de grande número de populares, que se concentram em frente ao Cinema Rio Branco, para iniciar o comício. Presentes estavam políticos de várias tendências, inclusive o vereador Antônio Garcia Filho, do Partido Socialista Brasileiro.
Prevendo represália policial, o vereador Domingues dirige-se ao povo para convencer a voltar ordeiramente para as suas residências, pois a presença de todos já tinha demonstrado a repulsa do povo ao regime do arbítrio e a sua resistência a Ditadura. O comício não foi, entretanto, realizado porque os promotores do Partido Comunista, diante das provocações policiais, revolveram adiá-lo, a fim de impedir o banho de sangue comandado pelo governador Rolemberg Leite e seu secretário João de Araújo Monteiro. Porque as ordens transmitidas pelo Chefe do Executivo sergipano ao Chefe de polícia eram para impedir a realização do comício a qualquer preço. “A ordem era de prender, espancar, espingardear o povo para fazer, correr o sangue dos democratas da terra de Fausto Cardoso”.[4]
As tropas tomaram os pontos principais do centro da cidade, antes do ataque aos manifestantes: O Corpo de Bombeiros, sob o comando do Cap. João Lima; uma tropa de Infantaria da Polícia Militar, sob o Comando do Cap. Amintas; a Cavalaria, sob o Comando do Cap. Temistocles e a Polícia Civil sob o Comando do Coronel Djenal Tavares Queiroz. Mesmo com a atitude prudente dos organizadores em dispensar os participantes do comício, não impediram que o Chefe de Polícia cumprisse a risca as ordens recebidas, tinha carta branca para agir contra os trabalhadores.
Morte
O operário Anísio Dario se encontrava ao lado de centenas de companheiros trabalhadores, funcionários, estudantes e intelectuais sergipanos, que pretendiam realizar uma demonstração pública de protesto contra a cassação dos mandatos do povo. O comício contra o indecoroso e inconstitucional projeto Ivo d’Aquino, que visava cassar os mandatos dos representantes do povo eleito sob a gloriosa legenda do Partido Comunista do Brasil.
Segundo testemunha da época, a cena era indescritível, o aparato bélico era assustador. Sob as ordens de Simeão Sobral, que apontava contra o povo uma metralhadora de mão, a multidão se espalhava pelos dois primeiros trechos das Ruas João Pessoa e Laranjeiras. A escuridão era completa, apenas estava acesa a luz da entrada do cinema Rio Branco. “Apesar de tudo notava-se grande massa no centro da cidade, vinda de todos os bairros e ruas, a fim de ouvir a palavra de seus oradores. A polícia dispensava os numerosos grupos de populares, inclusive dizendo que “a coisa está preta” e “hoje vai haver bala”.[5]
A cavalaria avança sobre o povo que corre atônico, caindo, esbarrando-se uns aos outros e impiedosamente continua o massacre, aos gritos de fora fascistas. De repente um tiro: e no chão um homem de cor escura, perdia os seus últimos minutos de vida. “ um policial, depois de ter ferido na testa o dirigente operário Anísio Dario, carpinteiro, aponta-lhe uma mauser e desfere um tiro que o atinge no lado esquerdo do tórax. Anísio morre instantaneamente”.[6] A constatação do óbito foi imediatamente feita pelo médico vereador socialista, Antonio Garcia. “O deputado udenista Jucelino Carvalho e o jornalista dr. Antonio Machado viram o morto no mesmo momento, tendo sido, porém, feita a identificação pelo vereador Carlos Garcia, na Chefatura de Polícia, para onde o Cel. Djenal mandou transportar o cadáver, mais de uma hora após o crime”.[7]
Sepultamento
O féretro saiu da residência do falecido, às 11 horas, Rua tenente Cleto Campelo no bairro Joaquim Távora (18 do Forte). Apesar da manhã chuvosa, milhares de pessoas compareceram ao Cemitério dos Cambuis, “na face de todos lia-se a indignação e a revolta contra o bárbaro assassinato. Todas as Ruas por onde passou o acompanhamento estavam apinhadas de pessoas e em várias ocasiões partiram dos agrupamentos de populares vivas à democracia e abaixo à ditadura. A certa altura o caixão foi conduzido exclusivamente por moças e senhoras”.[8]
A grande massa popular que compareceu ao sepultamento de Anísio Dario, os discursos que operários, intelectuais, deputados e vereadores pronunciaram junto ao seu túmulo e mais ainda, as palavras da filha mais velha do falecido: “Prometo, meu pai, que serei mais comunista do que antes e que sua morte será vingada, pois temos de derrotar a nação”.
A chegada do corpo ao cemitério dos Cambuis foi louvada pelo operário Otoniel Santos, que falou de improviso, protestando em nome de seus companheiros, os trabalhadores, contra o assassinato pela polícia de Anísio Dario e tenta convencer o povo a tomar sob sua proteção a viúva e os doze filhos do falecido. À sepultura falaram os líderes sindicais Manoel Francisco de Oliveira e José Ataíde, ambos responsabilizando o governo de José Rolemberg Leite pela morte de Anísio Dario. Em seguido foi a vez do Deputado Armando Domingues “que em nome dos comunistas e do povo protestou contra os crimes praticados na noite de 2 de novembro e exigiu do governo a punição dos criminosos responsáveis”.[9] Por último falou o diretor do Jornal do Povo, vereador Carlos Garcia, “em nome dos que trabalham naquele órgão democrático de nossa imprensa e do qual era Anísio Dario um dos mais destacados ajudistas na qualidade de presidente da Comissão de Ajuda do Bairro Joaquim Távora”.[10]
Romaria
Duas semanas após o sepultamento de Anísio Dario, uma Comissão do Sindicato, composta pelos operários Leonidio José dos Santos, Edivaldo Souza, Otávio José dos Santos, aprovam a realização de uma grande romaria ao túmulo do colega assassinado pela ditadura, para domingo, dia 21 e divulgaram em toda a imprensa: “Comunicou-nos a referida Comissão que o Sindicato da Construção Civil se encontrará de portas abertas, no próximo domingo, dia 21, para todos aqueles que quiserem se associar a esta justa homenagem ao querido líder operário, e uma das figuras de maior destaque e prestigio não somente no seio dos trabalhadores da Construção Civil como de todo o proletariado de Sergipe”.[11]
Na semana da romaria, todos já havia sidos alertados pela força repressora da sua proibição. Na véspera, ou seja, no sábado o presidente do sindicato, Aristides foi avisado para não abri a sede da entidade, inclusive pelo Delegado do Trabalho. A partir das 13 horas começa a chegar os trabalhadores a Rua Nobre de Lacerda, onde ficava a Sede. Os trabalhadores se aglutinam com outros companheiros, para em seguida marcharem à última morada de Anísio Dario. Nas adjacências, incluindo a Praça do Cemitério, a cavalaria encontrava-se em prontidão, dispersando os transeuntes que pretendiam se dirigir a sede do Sindicato. Havia inclusive um carro da polícia enfrente ao cemitério.
Graças à resistência popular, pode os trabalhadores contra a vontade de seus algozes prestarem ao companheiro Anísio Dario as merecidas homenagens. Exatamente às 16,30 horas a multidão concentrou em torno do túmulo de Anísio Dario. O ambiente era de profunda emoção e muitos tinham os olhos raros d’água: “Ouvem-se primeiramente as palavras do operário Lourival Santos que em nome da Comissão Protetora, e de todos os trabalhadores em construção civil depositou um ramalhete de flores no túmulo e indicou aos operários o exemplo de Anísio, operário consciente na vida e herói na morte, lutando até o fim pela classe operária e em defesa da Constituição”.[12] Em nome da Comissão de Ajuda ao Jornal do Povo pronunciou vibrante discurso o jornalista Aluysio Sampaio, “que mostra qual o papel do povo nessa hora grave para a democracia”.[13]
A aglomeração em frente ao Cemitério dos Cambuis chamou à atenção de um jornalista carioca, que ora visitava a capital sergipana e percebeu a importância para registrar o acontecimento e tirou algumas fotos. Foi bastante para que o policial Simeão avançasse sobre o jovem, apreendendo a máquina fotográfica.
Vozes operárias [14]
A melhor maneira de prestar as nossas homenagens a Anísio Dario, velho lutador sindical, fundador e construtor da nossa sede social e um elemento de destaque nas lutas pelas reivindicações da classe, é levando flores a sua sepultura. Convido, por intermédio deste jornal todos os operários sindicalizados e o povo em geral, amigos de Anísio Dario, todos os democratas, para se solidarizarem com a nossa admissão, nesta grande homenagem.
Leonidio José dos Santos
***
Iremos ao túmulo de Anísio, domingo, levar flores para o companheiro sindical. Só assim pagaremos os grandes esforços a Anísio Dario e nossos companheiros na fundação do nosso Sindicato em 1935, e um dos mais destacados construtores da sede. Não se trata de romaria partidária, mas de um preito de gratidão.
João Teófilo Chagas
***
Anísio Dario, meu companheiro de lutas sindicais, no Sindicato as suas sugestões eram sempre acolhidas pela massa. Sentinela avançada na manutenção das famílias, dos sócios. O sindicato da Construção Civil abrirá suas portas domingo para os trabalhadores de todas as classes e o povo que levarão a sua palavra de sentimento democrático e gratidão ao túmulo do estimado Anísio, vítima na chacina de 29 de novembro.
Otávio José dos Santos
***
Na qualidade de carpinteiro, companheiro de trabalho de Anísio Dario, tenho a honra de convidar a todos os carpinteiros, pedreiros e armadores para a realização da romaria ao túmulo do inesquecível companheiro de lutas sindicais. Creio por certo que esta comissão receberá o apoio de todos os trabalhadores.
Edivaldo Santos
***
Homenagens
“Era um operário humilde, estimado de seus camaradas comunistas e dos trabalhadores aracajuanos. Vivo, Anísio Dario Lima Andrade era apenas um homem, como milhares de outros companheiros seus neste país: – honesto pai de família, trabalhador escrupuloso, firme militante comunista, consciente dos interesses de sua classe. Hoje seu nome é um símbolo. Símbolo de resistência ativa das massas populares ao terrorismo que se quer reimplantar entre nós, símbolo da firmeza com que nosso povo, tenso à frente a classe operária e a sua vanguarda política, à qual ele pertencia desde 1935 – e com que justo orgulho! – enfrenta as investidas do imperialismo ianque e de seus “paus mandados” nacionais contra as liberdades democráticas, o progresso e libertação de nossa terra”.[15]
Em agosto de 1962, um Projeto de Lei de autoria do Vereador Agonalto Pacheco (PCB), denominado Anísio Dario, uma Rua desta Capital, foi rejeitado. Em abril de 2008, a Prefeitura de Aracaju, homenageia o operário com seu nome no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CERET), situado a Rua Luiz Carlos Prestes, 99 no bairro Areias. Em 30 de maio do mesmo ano, o filho caçula de Anísio Dario, o metalúrgico aposentado, Zacarias Lima Andrade, na época com sessenta e cinco anos, recebeu em nome do seu pai, Anísio Dario Lima Andrade (Post Morten) a Medalha da Ordem do Mérito Serigy, conferida pelo Prefeito Edvaldo Nogueira. Estive presente nesta solenidade realizada no Auditório do Tribunal de Justiça do Estado, quando recebi das mãos do Prefeito a Medalha da Ordem do Mérito Cultural – Inácio Joaquim Barbosa. Em Aracaju foi inaugura a Av. Anísio Dario, no bairro 18 do Forte, cujo nome foi proposto pela então vereadora Tânia Soares (PCB). Após a morte do operário Anísio Dario, temerosos de represália toda a família transferiu-se para o Rio de Janeiro.
[1] História de Sergipe – República (1889-2000), Ibaré Dantas. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 2004.
[2] Noticiário do Governo – Secretaria da Justiça e Interior. Diário Oficial do Estado, 02 de dezembro, 1947.
[3] Idem.
[4] O Sangue do Povo, João Batista de Lima e Silva. Aracaju, Jornal do Povo, 31 de dezembro, 1947.
[5] A Chacina da Rua João Pessoa. Jornal do Povo, Aracaju, 03 de dezembro, 1947.
[6] A Chacina da Rua João Pessoa. Jornal do Povo, Aracaju, 03 de dezembro, 1947.
[7] Idem.
[8] Preito de homenagem da classe operária a um seu digno filho. Aracaju, Jornal do Povo, 03 de dezembro, 1947.
[9] Preito de homenagem de classe operária a um seu digno filho. Aracaju, Jornal do Povo, 3 de dezembro, 1947.
[10] Idem.
[11] Romaria ao túmulo de Anísio Dario. Aracaju, Jornal do Povo, 19 de dezembro, 1947.
[12] A Polícia da dupla Monteirinho-Djenal. Jornal do Povo, Aracaju, 2 de dezembro, 1947.
[13] Idem.
[14] Jornal do Povo (Depoimentos). Aracaju, 19 de dezembro, 1947.
[15] O Sangue do Povo, João Batista de Lima e Silva. Aracaju, Jornal do Povo, 31 de dezembro, 1947.
Esse poema foi feito por causa da morte do meu bisavô Anísio Dario? Fiquei muito emocionada com essa leitura.
ResponderExcluir