terça-feira, 18 de setembro de 2012

Ciganos, um milênio de história

   O que levou a interessar-me pela cultura cigana foi o entusiasmo com que ouvia quando adolescente no final dos anos sessenta, juntamente com Mãe Toinha, em ondas curtas, através da Rádio Nacional (Rio), a novela radiofônica de Janete Clair (1925-1983) Aqueles Olhos Negros, romance entre os irmãos Vladimir (cigano) e Nadja aristocrata russa, que haviam sidos trocados por vingança quando nasceram. 

   Em 1972 quando meus pais mudaram pela terceira vez para o município de Lauro de Freitas (grande Salvador), residia nas proximidades da cidade um bando de ciganos, seis ou sete famílias que habitavam em casas. Cheguei a flertar uma linda ciganinha do acampamento, mas os constantes olhares desaprovadores do pai me fizeram desistir da idéia. Ao lado de Celso Campinho e Timo Andrade estive em 1977 entre a equipe de produção do longa-metragem “Ciganos do Nordeste”, dirigido por Olney São Paulo, filmado na Bahia. 

   Em dezembro de 1985 conheci em Havana a numerosa família do cigano polaco Burtia Cuik, que se estabeleceu em Cuba em 1929 e falecera no ano de 1949. Casado com Terca (prima ucraniana) teve 19 filhos, todos nascidos sem exceção, em países diferentes. Levado pelas mãos do brasileiro Hélio Dutra (cidadão cubano), passamos boa parte da noite em companhia dos ciganos, conversando, ouvindo música e compartilhando da sua dança. Ao me despedir, oferecera-me um livreto sobre “a música e a dança cigana”. Na época Rogelio Sandin, descendente direto de Burtia estava preparando um livro sobre a saga de Burtia Cuik. 

   Anos mais tarde atendendo a solicitação do recente amigo, o maranhense Euclides Barbosa Moreira Neto, jornalista e cineasta, que conheci participando da XVI Jornada de Cinema da Bahia (1987), publiquei vários artigos entre setembro e dezembro do mesmo ano no jornal O Estado do Maranhão. Na época foi informado pela companheira Zoraide Vilas-Boas, jornalista da Rádio Educadora da Bahia – IRDEB, que se encontrava em São Luis participando do Festival de Cinema, organização por Euclides, que lera um longo artigo sobre os ciganos e sua cultura milenar. Da série dos artigos publicados no referido periódico, Euclides enviou: Zumbi, capitão dos Palmares e Fernando Pessoa. Outros textos foram publicados entre os quais aquele sobre os ciganos, que infelizmente fiquei sem cópia. 

   Em 1996 já residindo em Aracaju, convidado por uma professora da UFS a participar de uma cerimônia nupcial cigana, que aconteceu no ajuntamento que ficava no bairro Rosa Else, retomei as leituras sobre os ciganos. Na noite de 13 de dezembro de 2003, estive no Espaço Policar Eventos, localizado no Porto D’Antas, participando da “Magia Cigana – A Festa”, 5ª edição do evento que tinha como objetivo divulgar e desmistificar os costumes deste povo milenar. Durante a festa conheci o significado de cada etapa do ritual do casamento, bem como a sua gastronomia. Apaixonados por frutas, churrasco e tendo o pão como alimento sagrado, os ciganos não fazem nenhum encontro ou acordo sem brindar com um bom vinho. 

   Partidário da liberdade, do colorido da natureza, da alegria e da vida os ciganos são considerados um povo rude. Seja qual for o motivo, o tema continua me fascinando. 

   Origem do Povo – A origem do cigano é desconhecida. Os estudiosos que procuram reconstituir a sua história afirmam que a sua primeira grande dispersão pelo mundo se deu a partir da Índia e que viveram por muito tempo no Egito antigo. Hoje eles podem ser encontrados em várias partes do mundo. Os próprios ciganos desconhecem a sua origem e a explicam por meio de mitos e lendas. Estas lendas se reportam às explicações cristãs de criação do mundo e destacam a sua origem pura, sem o pecado original, que contaminou os demais homens. Eles são os homens puros, em oposição aos não-ciganos. O seu nomadismo é explicado como predestinado por Deus, que não lhes deu uma terra, mas lhes concedeu o mundo todo para andarem livremente. 

   A história dos ciganos, assim como a conhecemos atualmente é breve: cerca de 1000 anos, e principia com seu aparecimento no Ocidente europeu. Pouco conhecido e pouco estudado no Brasil, os ciganos, entre nós, continuam cercados de “mistérios” decorrentes da incompreensão, do etnocentrismo e do preconceito. Quase nada sabemos dos acontecimentos anteriores à sua migração; nem mesmo se já eram nômades ou sedentários. A história do povo cigano é a história de um grupo que jamais fez guerras, nem aspirou ao poder, mas desde o início sofreu com a guerra de outros e foi muitas vezes perseguido. 

   Não há comprovação histórica de onde nasceram os ciganos. Alguns afirmam que a origem está na Turquia e de lá emigraram para o Egito. De acordo com o folclorista e estudioso Luis da Câmara Cascudo (1898-1986), saíram os ciganos da Índia, Sind e Pendjab, vagueando pelo Afeganistão, Pérsia, Armênia, Ásia Menor em fora, entretanto na Europa pela Grécia, derramando-se pela península Balcânica, vindo à Valáquia, Moldávia, Hungria, onde são notados em 1417. Surgem nas terras germânicas um ano depois e, em 1427, estão em Paris. Em 1447 chegam à Catalunha. Nesse mesmo século XV estão em Portugal. A sua popularidade levou o dramaturgo Gil Vicente (1465-1536) escrever o Auto das Ciganas (1521), onde os personagens Martina, Cassandra, Giralda e Lucrecia confabulam em mal castelhano, diante do Rei D. João III, no seu Paço de Évora, no ano de 1521. 



   Chegada ao Brasil – O mais antigo documento conhecido no Brasil, em que figura um cigano que aqui aportara com mulher e filhos é um alvará de D. Sebastião, de 1574, que troca a pena de galés de João de Torres por exílio. Acredita-se que os ciganos começaram a vir para o Brasil nos séculos XVI, XVII e XVIII. Os primeiros eram degredados para a Bahia e Minas Gerais (Congonhas do Campo) foram os primeiros centros de concentração, ao tempo da colônia. Em 1718 chegam à Bahia as primeiras famílias ciganas. O Senado da Câmara deu-lhe para morada um trecho da Freguesia de Santa’Ana, perto da Palma, que passou a ser conhecido como Santo Antônio da Mouraria. Da antiga ocupação, não há atualmente nenhum vestígio, nem mesmo em outros pontos da cidade do Salvador. 

   Em 1710, os ciganos foram vitimas de violenta perseguição. As autoridades perceberam que os ciganos era um grupo homogêneo, unido, com uma só língua, com usos e costumes próprios, e por isso poderiam tornar-se uma força e um perigo. O decreto de 11 de abril de 1718 chamava à atenção das autoridades locais para o policiamento das atividades dos ciganos: “foram degredados os ciganos do reino para a Praça da Cidade da Bahia, ordenando-se ao governador que ponha cobro e cuidado na proibição do uso de sua língua e gíria, não permitindo que se ensine a seus filhos, a fim de obter-se a sua extinção”. Os povos ciganos que ainda resistem, procuram as estradas. Em 1726 e 1760 bandos de ciganos foram assassinados em São Paulo e, por decisão do Senado da Câmara, expulsos da cidade. 

   O Barão de Eschwege (1777-1855), militar, engenheiro e naturalista alemão, após ter trabalhado em mineralogia na Alemanha, passou a serviço de Portugal, vindo para o Brasil por ocasião da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, narra a participação entusiasta de um grupo cigano na comemoração pública quando do casamento da Princesa D. Maria Teresa, primogênita do Príncipe Regente, com seu primo, Infante de Espanha, D. Pedro Carlos, a 13 de maio de 1810. Eschwege informa: “Os ciganos foram convidados para as festas dadas na capital brasileira por ocasião do casamento da filha mais velha de D. João VI com o Infante espanhol. Os moços desta nação, trazendo à garupa suas noivas, entraram no circo montando belos cavalos ricamente ajaezados. Cada par pulou no chão, com incrível agilidade, e todos juntos, executaram os mais lindos bailados que eu jamais vira. Todos só tinham olhos para as jovens ciganas e os outros bailados que também executaram parecendo ter tido por único fim fazer sobressair os dos ciganos como os mais agradáveis”. 

   O historiador e médico baiano Mello Moraes Filho (1843-1919) que desenvolveu vários estudos etnográficos e folclóricos, em crônica “Um casamento de cigano em 1830” publicado em Festas e Tradições Populares do Brasil (1901) diz que: “Nessa época muitíssimos era os ciganos aqui residentes, entregando-se ao comércio de escravos e cavalos, empregados no foro e em vários misteres, todos porém constituídos em sociedade à parte, onde mantinham, sem a menor quebra de lealdade, as suas tradições e os seus preconceitos de raça”. O desenhista e pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), cuja obra é de grande valor para o estudo da história do Brasil no início do século XIX, integrou a missão artística francesa que veio ao Brasil em 1816, permanecendo por 15 anos, exercendo intensa atividade didática, escreveu e ilustrou “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil” em três volumes (1834-1839) documentários sobre a natureza, o homem e a sociedade fluminense no princípio do século XIX. 

   Durante sua estada em nosso país (1816-1831), Debret retratou-os e sobre eles deu o seu depoimento, afirmando que caracterizavam “tanto pela capacidade como pela velhacaria que põem no seu comércio exclusivo de negros novos e de escravos civilizados”, informando que “os primeiros ciganos vindos de Portugal desembarcaram na Bahia, e se estabeleceram, pouco a poço, no Brasil, conservando nas suas viagens, as habilidades do povo nômade”. E contaminado, ele também, pelo preconceito, afirma: “Esta raça desprezada tem por hábito encorajar o roubo e praticá-lo; roubam sempre alguma coisa nas lojas onde fazem compra e, de volta para casa se felicitam mutuamente por sua habilidade repreensível”. No Rio de Janeiro eles se instalaram na Rua dos ciganos (atual Rua da Constituição) até 1808, quando procuraram outras localidades mais próximas das estradas do interior, levados pelo seu comércio de ouro e de cavalos. 

   Perseguições – Os ciganos sofreram, ao longo do tempo, muitas perseguições. No século XVI, na Inglaterra, eram de tal modo mal vistos que todos aqueles que com eles se relacionassem corriam o risco de ser condenados à morte e ter seus bens confiscados, sem direito a julgamento. Na Europa Central, nos séculos XVII e XVIII, foram também perseguidos, de modo implacável, em vários estados. Desde 1933, a imprensa nazista começou a acentuar que os ciganos e judeus eram raça estrangeira, inferior, e que teriam “contaminado” a Europa como um corpo estranho. 

   As autoridades nazistas, com o apoio da generalizada antipatia contra os ciganos, puderam facilmente percorrer a via do extermínio desse povo. A 17 de outubro de 1939, quando Heydrich, a mando de Hitler, proibiu-os de abandonar seus acampamentos. Três dias depois, após recenseamento, foram transferidos para campos de concentração, esperando serem enviados à Polônia. A última e mais cruel perseguição por eles sofrida foi, contudo, a determinada pelo governo nazista da Alemanha, quando se calcula que, em conseqüência, 10 por cento da população cigana de todo o mundo foi exterminada nos campos de concentração, entre os fins da década dos 30 e os da II Grande Guerra. rancesa que veio ao Brasil em 1816, permanecendo por 15 anos, exercendo intensa atividade did 

   Cultura – Essencialmente nômade até hoje os ciganos vive pelo mundo, conseguindo sustentar-se basicamente do comércio. Devido à violência, as facilidades do mundo moderno, como as estradas asfaltadas e a necessidade de educar os filhos, tem tornado este povo sedentário, instalando-se com as famílias em cidades próximas as metrópoles. A tendência de todo cigano é fixar residência, não há mais lugar para o povo estar caminhando. Uma das justificativas para o sedentarismo é a perseguição social que o povo sofre, há quem ainda pense que todo cigano é ladrão ou gente que não presta. 

   Os ciganos têm um dialeto próprio denominado de shibi. Os grupos não têm certeza da origem da língua, entendida apenas por ciganos e ensinada pelos mais velhos aos mais novos que se interesse em aprendê-las. Acredita-se que a língua é de origem hebraica, com algumas variações incorporadas pelos próprios ciganos. Há indícios de cerca de 400 mil ciganos falam uma língua própria, o romani, e muitos outros falam dialetos dela, como o calo e o sinto. Esse povo alegre, que gosta de festas entre os grupos, falantes, gostam de gesticular muito, sem falar na hospitalidade, quando passam a conhecer o interlocutor, já que são extremamente desconfiados. Habilidosos, muitos homens usam a ourivesaria como meio de vida. 

   Qualquer cigano sabe cantar e tocar. Sua música não tem pressa de se exprimir, nem tampouco precisa dizer logo tudo e abruptamente. Os ciganos gozam universalmente de fama de músicos natos, e isto não se aplica apenas aos ciganos húngaros, mas também aos que vivem na Turquia e na Romênia. Os ciganos são logo reconhecidos pelas características próprias com que se apresentam (forma de vestir, de morar, o seu trabalho e a sua grande mobilidade). Eles têm os seus modos diferentes de vida, mas são pessoas iguais a qualquer outra, e precisa ser respeitadas também a individualidade do povo. 

   No Brasil, os ciganos são encontrados morando em casas, muitas delas luxuosas, ou em acampamentos de barracas. Alguns grupos se dedicam ao trabalho de fabricação, reparo e venda de utensílios de metal, enquanto outros se dedicam ao comércio e outras atividades correlatas. Alguns se apresentam muito ricos, fazendo uso de carros do último tipo, ostentando jóias de ouro, e outros são vistos como muito pobres, sujos, sem casas, adivinhos de sorte ou pedintes. 


Referências Bibliográficas 

CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte/São Paulo:Editora Itatiaia, Vol. I, 1984. 

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DORNAS FILHO, João. Os Ciganos em Minas Gerais. Belo Horizonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (Separata), Vol. III, 1948. 

FONSECA, Isabel. Enterrem-me em pé (A longa viagem dos ciganos), São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 

LELAND, Charles. Magia Cigana. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil (tradução Ana Zelma Campos), 1992. 

MORAES FILHO, Mello. Os Ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia/São Paulo: Edusp (1ª ed. 1886), 1981. 

____. Um casamento de cigano em 1830. In Festa e Tradições Populares do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1979. 

OLIVEIRA, Waldir Freitas. Ciganos: a arte de ver o outro lado das coisas. Salvador, A Tarde Cultural, 12. dez. 1992. 

ROMERO, Silvio. Os ciganos: contribuição e etnografia por Mello Moraes Filho (posfácio). Os ciganos no Brasil e cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia/São Paulo: Editora Edusp (1ª ed. 1886), 1981. 

ROSSO, Renato. Ciganos: uma cultura milenar. Petrópolis: Revista de Cultura Vozes, abr. ano 79, nº3, 1985. 

SANT’ANA, Maria de Lourdes Bodini. Os Ciganos: Aspectos da Organização 
social de um grupo de ciganos em Campinas. São Paulo: Edusp, 1983. 

_____.Nossos ciganos. São Paulo: Leitura, 9 (100) set, 1990. 


GILFRANCISCO: 
Jornalista, professor universitário, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. 

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